Graça preciosa X Graça barata no pensamento de Dietrich Bonhoeffer


Dietrich Bonhoeffer

Para entendermos a obra de determinado autor, não podemos deixar de considerar um pouco do panorama histórico em que estava inserido. No caso de Dietrich Bonhoeffer, o contexto histórico é de uma Alemanha nazista, em um regime totalitário, e que foi considerado, talvez, o regime mais cruel da história da humanidade, levando-se em consideração que é relativamente recente. Interessante é que em boa parte de seus escritos teológicos, ele não faz referência direta à sua contestação ao nazismo; entretanto, este mesmo autor teve cassada a sua autorização para ensinar na Universidade de Berlim em 1936, justamente quando ensinava os princípios contidos em sua obra Discipulado (publicado no Brasil pela Editora Sinodal). Portanto, nesta obra, escrita sob rígida censura, talvez encontremos um chamado ao combate ao mundo, que, no contexto alemão, se submetia ao nazismo, bem como uma igreja organizada incapaz de exercer qualquer papel benéfico no contexto de então.

Bonhoeffer nasceu em 4 de fevereiro de 1906, e desde cedo demonstrou interesse em se formar em Teologia, tendo sido bacharelado em 1927. Após estudou ainda um ano nos Estados Unidos, e se habilitou à docência na Universidade de Berlim. Em 1933, se tornou pastor em uma igreja em Londres, Inglaterra. Interessante notarmos que toda a sua trajetória coincide também com o surgimento do nazismo. O partido nazista foi fundado em 1919, tendo contado com a aderência de Hitler em 1920, tendo se tornado um de seus principais líderes. Em 1923, o partido nazista tentou aplicar um golpe de Estado e derrubar a República, no que foi fracassada, sendo que, Hitler e mais alguns de seus partidários acabaram sendo presos. Isto deu a Hitler e ao partido nazista, projeção nacional. Foi na prisão que Hitler escreveu Mein Kampf, em que expunha as principais idéias nazistas. Com a terrível crise alemã daquele período, Hitler foi gradualmente sendo visto como uma alternativa para recuperar o prestígio alemão, sendo que, em 1932, foi nomeado chanceler, tendo amplos poderes. Um de seus primeiros atos foi colocar fogo no parlamento, mas jogar a culpa nos políticos de esquerda, jogando-os em um campo de concentração. Em seguida, fez uma limpeza interna no próprio partido, eliminando 70 líderes e cerca de cinco mil nazistas. Estava implantado o regime totalitarista, e, em 1933, proclamou a criação do terceiro Reich. Começou a partir daí a sua investida contra os judeus. Nas palavras de Paul Tillich, em 1º de abril de 1933, “as igrejas nada disseram quando os judeus foram atacados pela primeira vez e muitas vidas e propriedades foram destruídas” (1). Logo, percebemos que a igreja oficial não estava contra o regime nazista, estando, em larga escala, até a favor, pelo menos em um primeiro momento. Foi neste ano, por exemplo, que Tillich, um dos adeptos do socialismo cristão, foi exilado, indo para os Estados Unidos. Notemos que em 1933, Bonhoeffer estava em Londres, na, por assim dizer, tranqüila posição pastoral, mas, em 1935, decidiu voltar à Alemanha. Ou seja, deixou um proeminente cargo na Inglaterra, para retornar ao caos em que tinha se transformado sua terra Natal. Somente uma pessoa imbuída de uma convicção fora do comum faria tal coisa. Bonhoeffer foi contemporâneo a diversos teólogos de renome, entre eles, Paul Tillich, que foi exilado em 1933, indo morar nos Estados Unidos, e só retornando em 1948. Karl Barth ficou durante muito tempo neutro, diante do nazismo, até passar para a oposição e conclamar a ação dos ingleses contra os nazistas. Bulltman não parecia ter interesses políticos, não tendo saído da Alemanha, nem sofrendo nenhuma perseguição por parte dos nazistas, visto que não entrava em assuntos políticos, não obstante sua genialidade teológica. Em 26 de abril de 1935, Bonhoeffer ajudou a fundar um seminário para pregadores, perto da região do Mar Báltico. Tal seminário foi transferido após para a região de Finkenwalde, estando, desde o seu nascedouro, na ilegalidade. Em fevereiro de 1936 perdeu sua licença para lecionar na Universidade de Berlim, sendo que, na época, ensinava os princípios expostos em seu livro Discipulado. Interessante tal fato, visto que, talvez, o regime tenha visto em tais ensinamentos algo com o que se preocupar. Em 1937 o governo determinou o fechamento do seminário, mas este continuou funcionando até 1940. Em 1939, Bonhoeffer escreveu Vida em Comunhão, obra em que esboçou um pouco da experiência no dito seminário. Em 05 de abril de 1943, Bonhoeffer foi preso, e executado em um campo de concentração nazista em 9 de abril de 1945, quando o regime já estava falido e já se sabia derrotado para as tropas aliadas. Hitler se suicidou no dia trinta do mesmo mês, ou seja, quando Bonhoeffer foi executado, os nazistas já tinham consciência de que iriam perder a guerra.

Com isso, podemos perceber um pouco do contexto histórico em que o livro Discipulado e os conceitos de graça barata e graça preciosa foram escritos. Era um contexto de extrema decadência da religião oficial, em que se apoiava o nazismo, e que, em nome da própria segurança, não se opunha a tal regime, deixando-se assim de se conformar ao evangelho de Cristo. Por isso os conceito de graça barata e de graça preciosa em Bonhoeffer não podem se encontrados na ortodoxia. Se buscarmos nos compêndios de teologia sistemática, não encontraremos nenhum conceito de “graça barata”. Isto porque, de fato, por uma análise teológica do termo, veremos que não existe tal graça barata, por parte de Deus. Da parte de Deus, a graça é sempre preciosa. É dom imerecido dado a favor dos homens (Efésios 2.8-9). A graça de Deus é sempre preciosa, e Ele não tem oferece nenhuma outra graça que não seja essa. Por isso, o conceito da graça barata de Bonhoeffer não pode se encontrado na ortodoxia, mas sim na ortopraxia. Ou seja, a questão é de prática, e não apenas de teoria. A graça barata é uma resposta não condizente para com a graça preciosa oferecida por Deus, e, cujo padrão, estava no discipulado com Cristo. Para Bonhoeffer, o discipulado com Cristo era a oposto ao regime nazista bem como a uma religião oficial que via em si mesma a única finalidade para a existência. Bonhoeffer então faz um apelo ao retorno das raízes do discipulado cristão, única expressão de vida condizente com a graça preciosa que Deus oferece aos homens. A igreja oficial poderia até ter uma doutrina correta de graça, mas não uma prática condizente, fazendo da graça preciosa, uma graça barata, e tal comportamento distorcido acabaria também por criar uma teoria distorcida, na tentativa de justificar o seu mau comportamento, ou mesmo a sua omissão. A lógica da graça barata é o entendimento de que, “pelo fato da conta já ter sido paga”, não haver mais necessidade de compromisso, de posicionamento, próprio da igreja oficial do período, que se omitira frente aos desmandos do nazismo, sob a desculpa de que a religião não deveria influenciar na política, posição esta defendida até por Karl Barth, pelo menos em um primeiro momento. Portanto, Bonhoeffer fala da graça barata não através de um conceito fechado, mas sim através de suas amplas manifestações, sendo que iremos verificar algumas delas.

A graça barata é graça como refugo. Ou seja, é a graça oferecida sem nenhum preço a ser pago. É a promessa do perdão sem nenhum compromisso com o discipulado. Basta uma simples aceitação da graça, e já se está perdoado, sem nenhuma necessidade de arrependimento. É um assentimento meramente intelectual da idéia de graça.

A graça barata significa, portanto, graça como doutrina, ou seja, sem correspondência nenhuma com a existência. Fica meramente na cabeça. Não vai para o coração, nem para os atos.

A graça barata significa justificação dos pecados, e não do pecador. Ou seja, pode-se fazer de tudo, uma vez que já se está perdoado. Entretanto, a graça preciosa justifica o pecador, ou seja, o ser humano diante de Deus, e não os seus atos pecaminosos. A aceitação da graça preciosa implica em abandono do pecado, e não a sua justificação. Os defensores desta graça barata até atacam aqueles que tentam resgatar a originalidade das palavras de Jesus, chamando-os de legalistas.

Logo, a manifestação da graça barata, por assim dizer, se dá, primeiramente, em uma distorção da verdadeira doutrina bíblica e em segundo lugar em uma resposta inadequada ao chamado ao evangelho. É uma distorção, pois diz que o crente pode ficar inerte em tal graça, deixando que ela a tudo opere sozinha, e que, qualquer tentativa de se conformar às palavras de Jesus é a rejeição da própria graça. É uma resposta inadequada ao evangelho, pois não induz ao compromisso, ao discipulado, à real transformação de vida.

Contrariamente, a graça preciosa chama ao discipulado. É preciosa, pois custa a vida do próprio homem. Quem quiser desta graça tem que dar a própria vida. E é graça porque da vida ao pecador. O homem perde a vida, mas ao mesmo tempo recebe vida. É o caráter paradoxal do discipulado e da graça de Deus. Aqui também Bonhoeffer não dá um conceito fechado da graça preciosa, mas sim, faz uma séria de afirmações, ou de manifestações de com tal graça se manifesta na vida das pessoas que a aceitam verdadeiramente. Bonhoeffer cita o exemplo do apóstolo Pedro de como tal graça se manifestara em sua vida através do chamado ao discipulado. Cita também que, com a expansão do cristianismo, houve uma decadência em sua vida espiritual, perdendo-se gradualmente a sua graça, sendo o movimento monástico uma forma de protesto contra tal secularização da igreja. Ocorre que o movimento monástico foi tolerado pela Igreja, de tal modo que, se criou o conceito de dois tipos de cristãos: uns especiais, que, teriam capacidade de se conformarem ao severo discipulado de Cristo, e outro grupo compondo o restante da cristandade, que não precisavam se amoldar ao discipulado, visto serem cristãos “normais”. Para Bonhoeffer, foi Lutero que resgatou a idéia de que o discipulado de Jesus era para todos os cristãos, e não a realização excepcional de alguns. Sob esta perspectiva, o convento não passava de lugar para auto-afirmação de uma vida piedosa acima dos demais, de modo que, o mundo passava a fazer parte do convento. Lutero fez o caminho inverso. Saiu do convento para o mundo. “A obediência perfeita ao mandamento de Cristo deveria acontecer na vida profissional de todos os dias”. Entretanto, não demorou para a mensagem de Lutero acerca da graça também ser distorcida, de modo que, a graça, que era um resultado, uma conclusão lógica após todo uma vida de árduo discipulado, passou a ser visto como premissa que dispensaria o cristão de todo e qualquer esforço. “Desaparecera o conflito entre a vida cristã e a vida profissional de cidadão mundano. A vida cristã consiste em viver no mundo e tal qual o mundo, sem dele me distinguir, seja no que for, nem devendo – por amor da graça – distinguir-me dele, embora em determinadas oportunidades, eu saia do mundo para penetrar no âmbito da igreja, para ai me assegurar do perdão dos pecados (p. 15)”. Com este raciocínio, e a referência ao ensino luterano que fora distorcido, talvez Bonhoeffer tivesse em vista a igreja oficial, que, não raras vezes, se recusara em se envolver em “assuntos mundanos”, fechada em si mesmo, alegando uma certa neutralidade. Entretanto, para evitar certa jactância, Bonhoeffer faz questão de transmitir o ensino de Lutero, que, mesmo em meio ao discipulado exorta aos cristãos para reconhecerem que são sempre pecadores, não importa quanto esforço façam (pecca fortiter). Não há duvida de que Bonhoeffer lança em rosto do luteranismo oficial o fato de ter barateado o ensino de Lutero: “ser luterano seria deixar o discipulado de Jesus aos legalistas, aos reformados, aos entusiastas.... Cristianizara-se, luteranizara-se um povo inteiro, porém às expensas do discipulado, a um preço demasiadamente barato (p.17)”. Talvez, sob esta perspectiva, possamos verificar por que Bonhoeffer perdera sua licença para ensinar os princípios contidos no Discipulado na Universidade de Berlin. É um protesto contra a igreja organizada, inerte contra a mundanidade. “O preço que temos que pagar com o colapso da igreja organizada será qualquer outra coisa senão uma conseqüência necessária ao embaratecimento da graça?” Essa graça barata arruinou qualquer tentativa de discipulado com Cristo. Bonhoeffer chama-nos a uma reforma de nossas vidas, como se disse dantes, não da ortodoxia, mas da ortopraxia: “Simplesmente por não quereremos negar que já não estamos no verdadeiro discipulado de Cristo, que somos, é certo, membros de uma igreja ortodoxamente crente na doutrina da graça pura, mas não membros de uma igreja do discipulado”. O chamado de Bonhoeffer é para se procurar entender e viver de forma autentica a graça: “Por amor da verdade, essa palavra tem que ser pronunciada em nome daqueles de entre nós que reconhecem que, devido a graça barata, perderam o discipulado de Cristo, e, com o discipulado de Cristo, a compreensão da graça preciosa.” Para Bonhoeffer, “graça nada mais é senão o discipulado!”

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