Teologia da Espiritualidade: Espiritualidade Contemplativa II



Essas são algumas das características da dita espiritualidade contemplativa: Fuge (foge), Tace (cala-te), Quiesce (aquieta-te)

Fuge (foge): em sentido negativo, fugir, deixar a cidade, deixar as futilidades, deixar as paixões, deixar aquilo que afasta de Deus, fugir do que arrasta para o pecado (pecado é hamartia – errar o alvo, o esquecimento do Ser; ao contrário de anamnesis – “fazei anaminesis de mim”). “O mundo é o mundo do esquecimento” (Marcos, o Eremita). O mundo é de morte, pois “jaz no maligno”. 

Em sentido positivo, fuga é fugir para Deus e para tudo o que leva a Ele, “fugir para o Alguém, fugir para o Único, fugir unificado para o único Um”. Sair do mundo e o mundo sair de dentro de ti.

Sentido psicológico e sociológico: fuga como necessidade vital do ser humano. Fuga da opressão, das relações senhor/escravo, das competições hierárquicas, da necessidade de “status”. Fugir para evitar os males psicossomáticos. “Fugir para fora do mundo para Alguém que não é deste mundo, para se perceber que o mundo não tem em si seu sentido e fim” (Arsênio). Fuga implica em movimento, saída.

Figuras bíblicas: Abraão ao ouvir o chamado de Deus saiu de sua cidade, do meio de sua parentela, da sua religião, e seguiu “a Voz” para o deserto. Elias viveu a solidão, onde foi alimentado pelos corvos e viveu a total dependência de Deus. Também fugiu da perseguição para a solidão, onde foi tratado por Deus, e ouviu “a Voz” no silêncio, lhe dando segurança e conforto. Elias, finalmente, “fugiu” da presença de seu discípulo Eliseu para a presença de Deus, para todo o sempre, deixando seu seguidor a sós, para ter suas próprias experiências. Mas Jesus é a própria figura de alguém de movimento. Ele “foge” dos céus para vir habitar entre os homens. Desde criança, já é um filho “fujão”. Ele foge da presença dos pais, e vai para o Templo, para a casa do Pai, para tratar das coisas de Deus. Ele saiu das coisas cotidianas dos homens para o deserto, para ser tentado, no início do seu ministério. Constante eram suas fugas para os lugares desertos, onde buscava a presença do Pai, afastado inclusive de seus discípulos. Quando tentavam fazer dele rei, ele fugia da multidão. Após sua ressurreição, ele “fugiu” da presença dos seus discípulos, até a presença do Pai eterno, a fim de que seus seguidores pudessem viver da dependência do Espírito de Deus, e não de sua própria dependência física.


Tace (cala-te): “quem domina a língua domina o corpo” (Tiago). “No muito falar não falta pecado” (Salomão). 


“De toda palavra ociosa que o homem disser dela dará conta no dia do juízo”, “a boca fala do que está cheio o coração”, “pela tua palavra será justificado ou condenado”, “o que sai da boca é que torna alguém impuro” (Jesus). “Não é preciso fazer silêncio, pois ele já existe”. “Derrubar uma árvore faz mais barulho do que o crescimento de toda uma floresta”. “Eis que já se passaram trinta anos que não rezo a Deus por causa de um pecado, mas por isso eu oro: Senhor Jesus, protegei-me contra minha língua – e no entanto, eu ainda peco e caio diariamente pela língua” (Patriarca Sísoes, Apo 808[1]).

Perigos no muito falar[2]: a curiosidade, pois leva a falar demais dos outros, e nisso sempre há o risco do pecar. “Um monge nunca deve andar atrás de saber como é este ou aquele; tais perguntas apenas o afastam da oração e levam às calúnias e às conversas vãs; por isso, o melhor é calar-se inteiramente” (Apo 996[3]). Tal curiosidade pode levar facilmente à distração, ao afastamento do foco em Deus.

O outro perigo é o julgamento, julgar os outros. Isso pode ocorrer constantemente, quando se fala sobre alguém. Havia um antigo apotegma dos padres do deserto que dizia que, quando dois irmãos marcavam para conversar, Satanás enviava para aquele local o demônio da maledicência. Quando dois irmãos se encontram para conversar, o seu assunto preferido pode ser o de falar de outro irmão que está ausente (o assunto preferido de dois crentes é falar de outro ausente). Daí, as comunidades monásticas terem sempre que trabalhar o equilíbrio e a tensão de ser, ao mesmo tempo, uma comunidade, mas sabendo resguardar a solidão. “O julgar pode ser uma inconsciente autoprojeção sobre o outro”. “Quando ninguém lhe parece impuro, então te tornaste puro” (Isaac o Sírio). Há outro dito dos padres do deserto acerca de um monge, que, viu, de longe, um irmão e uma mulher, “brincando” um com o outro, fazendo coisas inconvenientes. Aquele monge foi se aproximando sorrateiramente, até chegar próximo dos dois e gritar bem alto: “Parem com isso, vocês não têm vergonha”? Até que ele percebe que não se tratavam de duas pessoas, mas sim de dois feixes de trigo. Com isso se quer dizer que, quando se julga o outro irmão, mesmo quando se pode “ver” a situação, há um grande risco de tal julgamento ser somente uma autoprojeção daquilo que vai dentro de si próprio em direção ao outro. Talvez seja por isso que os padres do deserto ensinavam que, quando alguém visse outro pecar, deveria dizer: “Pai, perdoa-me porque eu pequei!”. “Se queres encontrar a serenidade onde quer que estejas, então, em tudo o que fizeres, deves dizer: Quem sou eu? E não julgues a ninguém” (José, Apot 385). “Quem se conhece a si mesmo não vê as falhas do irmão” (Apot 1011). “Se alguém carrega seus próprios pecados, não fica reparando no pecado dos outros” (Abba Moisés, Apot 510). “O julgamento dos outros é sempre um sinal de que a pessoa não se encontrou consigo mesma” (Anselm Grün).

Outro perigo no muito falar é a vaidade. Além de muitos terem como preferência sempre falar mal de outro, outro vício é o de falar de si mesmo, atrair dos outros a atenção para si. “Seja a boca do outro que te elogie, e não a tua própria” (Salomão). Isso denota falta de maturidade, carência, atraindo o aplauso alheio. “A tagarelice é o trono da vanglória, onde ela senta-se em juízo sobre si mesma e toca o trombone sobre si para o mundo inteiro” (Clímaco).

Outro risco é a dispersão interior. “Assim como as portas do banho quando ficam sempre abertas rapidamente deixam o calor escoar-se de dentro para fora, assim também quem muito fala, mesmo que fale coisas boas, deixa sua lembrança fugir pelo portão da sua voz” (Diádoco). “Parece-me ser quase impossível falar sem ao mesmo tempo pecar. Mesmo na mais exigente discussão, introduz-se alguma coisa que parece poluir a atmosfera. Inexplicavelmente o falar diminui minha capacidade de vigilância e abertura, torna-me mais egocêntrico. Após minha discussão com os estudantes de New Haven, no último domingo, senti-me não apenas cansado e exausto, mas também como se tivesse deformado alguma coisa ao falar a resepito dela; como se tivesse tentado pegar uma gota de orvalho. Depois, senti-me perturbado e não consegui dormir. São Bento falar com muita clareza sobre a importância do silêncio. Ele acha que mesmo sobre as coisas boas é melhor se ficar calado do que falar. Com isto ele parece querer dizer que é praticamente impossível falar-se de coisas boas sem com isto também se entrar em contato com as coisas más, assim como é impossível comer carne sem antes haver matado um ser vivo (Henri Nouwen[4]).”

Calar-se para ouvir a Deus. Calar-se para ser capaz de Deus. Calar porque Deus habita no silêncio. “O Senhor está no seu Santo Templo, cale-se diante d’Ele toda terra” (Hb 2.20). “A oração surge do silêncio e ao silêncio retorna”. “Tua palavra surge do silêncio e ao silêncio retornará”. “Que teu verbo venha de Deus e retorne para Deus”, assim como fez Jesus, o Verbo de Deus. “Orar não é só pensar em Deus, nem só falar com Deus, é estar em Deus”. Isto porque, não pensamos em quem esta perto de nós; só pensamos em quem está distante. E também podemos falar com alguém, sem estarmos necessariamente ligados a tal pessoa. Daí o porquê de orar, é estar na presença de Deus, com Ele, visto que Ele, conosco sempre está. É manter a consciência de Sua presença. Mas também é preciso ter cuidado com o silêncio doentio: “o que torna os mortos tão pesados é o peso das palavras que não souberam dizer”. Pela terapia, “faça sair o veneno da goela da serpente”. “Que teu silêncio não seja irresponsável”. O mestre, acima de tudo, se coloca como alguém que ouve o seu discípulo.

Quiesce (tranquiliza-te): repouso, descanso, paz, hesychia, shalom. É a paz interior decorrente do casamento da alma com Deus. “Encontra a paz interior e uma multidão será salva ao teu lado” (Serafim). “Um ser de paz comunica sua calma ao mundo inteiro”. “A paz é o primeiro dom do ressuscitado, pois ele disse aos seus discípulos: a paz seja convosco!”. “O verdadeiro homem espiritual não é o homem poderoso, e sim o homem manso”. “Deus busca entre os homens um lugar para o seu repouso”. “E vindo, ele evangelizou a paz, a vós que estáveis longe e aos que estavam perto” (Ef 2.17). “Ora, o fruto da justiça semeia-se na paz, para os que exercitam a paz” (Tg 3.18).

Descansar é tão mandamento quanto não roubar ou adulterar. Jesus é o nosso Shabbat, daí, fugimos para estar com Ele e n’Ele. Todo trabalho deve conduzir ao descanso. Descansar para contemplar. “Não ando a procura de grandes cousas, nem de cousas maravilhosas demais para mim. pelo contrário, fiz sossegar a minha alma, como a criança desmamada se aquieta nos braços de sua mãe, como essa criança é minha alma para comigo” (Sl 131.1-2). A ansiedade e a preocupação são inimigas da paz: “Não andeis preocupados por coisa alguma” (Jesus). “Colocai toda sua ansiedade sobre Deus” (Paulo). “A principal obra da hesychia (sossego da alma) é a ameriminia (despreocupação) perfeita de todas as coisas, razoáveis ou não” (João Clímaco).

Quem abre a porta às preocupações razoáveis, abre também às que não são. A quietude interior é um estado de alma que não sofre nenhuma partilha: ou é total, ou não existe. Um pequeno cisco atrapalha a visão, uma pequena preocupação faz a alma perder a paz. Eliminar a preocupação passa pelo contentamento: “deseja tudo o que tens e tens tudo o que desejas”. “Não está em paz quem se compara com os outros”. “Onde há inveja, não há paz”. “Só os humildes vivem em paz”. “Só vive em paz quem se coloca como último de todos e servo dos demais”. Acima de tudo, a paz não é algo que se conquista, mas um dom recebido: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize (Jo 14.27). 

Nas próximas postagens, será abordada a questão acerca do tratamento de nossas paixões (em seu sentido negativo). Leia aqui para meditarmos um pouco do modo pelo qual podemos lidar com a gula.




[1] Grun, Anselm. As exigências do silêncio, p. 8.
[2] Ibdem, ps. 8-14)
[3] Ibdem.

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